EM BUSCA DO DYLAN PERDIDO
UMA LEITURA DE AR DE DYLAN, DE ENRIQUE VILA-MATAS
Keywords:
Ar de Dylan, Enrique Vila-Matas, Bob DylanAbstract
“Esse ar que é a matéria de que somos feitos,
leve vento de vida e morte, ar de todas as máscaras,
ar de Dylan”
VILA-MATAS, 2012, p.318.
Rarefeito, raro e feito ou um raro efeito? Ou seria um efeito do ar? A narrativa do romance Ar de Dylan (2012), de Enrique Vila-Matas[1], é (com o perdão da palavra) ventilada pelo ar. Obviamente, referimo-nos ao ar em sentido figurativo, abstrato, impalpável. Tanto personagens, quanto o enredo escapam entre os dedos do narrador. No que concerne a esse efeito, o primeiro espaço da narração do romance é decisivo. Nesse caso, referimo-nos ao espaço acadêmico apresentado pelo narrador do romance. Este personagem é um profícuo escritor catalão convidado para participar de um congresso sobre o fracasso. O convite não é de todo sem propósito já que, como afirma o narrador, “poucas coisas parecem tão intimamente ligadas como o fracasso e a literatura” (VILA-MATAS, 2012, p.13). No congresso, esse narrador-personagem dá uma volta no parafuso do foco narrativo, pois a história não diz respeito a ele, mas ao também escritor catalão Juan Lancastre, falecido antes do início da narração, e a seu filho, Vilnius Lancastre.
Em uma conferência sobre a vida e a obra de Juan Lancastre, o narrador relata que um tema central da obra do homenageado, o fracasso, seria apresentado por seu filho Vilnius. Inclusive, este último personagem seria o mais indicado para essa empreitada, pois além de aglutinar o fracasso na vida pessoal e na vida profissional como cineasta e publicitário, também possui como obsessão fracassar na apresentação a respeito da obra do pai. Na verdade, Vilnius possui ao menos outras duas obsessões: “filmar a história do fracasso geral do mundo” (Ibidem, p.31), projeto que ele reconhece ser irrealizável, e descobrir a autoria da frase “quando escurece, precisamos sempre de alguém”, presente no filme Três camaradas (1938). O nó acerca da autoria da frase se dá porque o filme se baseia em um romance de Erich Maria Remarque, dirigido por Frank Borzage e roteirizado por Francis Scott Fitzgerald e Edward Paramore. A incerteza e o fracasso são, portanto, as linhas com as quais Enrique Vila-Matas enreda seus personagens confirmando que tudo o que é sólido desmancha no ar e que todas as respostas continuam soprando no vento.
A surpresa da exposição do autor catalão consagrado ser proferida pelo filho fracassado do escritor, longe de levar o público ao delírio, provoca repulsa nos espectadores. Não por acaso, grande parte dos conferencistas ojerizam a apresentação e a abandonam, com exceção do narrador. Justamente a permanência na conferência fracassada de Vilnius aproxima ambos os personagens conforme o narrador se dá conta que:
Com sua desastrosa intervenção interminável, Vilnius pensava se tornar o único participante do congresso a se encaixar com perfeição à verdadeira essência e espírito daquele encontro internacional sobre o fracasso. Isto é, pensava fazer uma apresentação pública completa e exemplar de como se fracassa plenamente e de verdade (VILA-MATAS, 2012, p.17).
Assim, a comunicação de Vilnius se revela uma emboscada preparada pelo personagem aos conferencistas. Descobrimo-lo quando o personagem discorre sobre um conto autobiográfico chamado “Teatro verdade”. Nesse texto, ele relata um acidente sofrido recentemente: ao bater a cabeça depois de um tombo, o personagem, que guarda uma semelhança física gritante com Bob Dylan, herda a memória do pai recém falecido. Diante disso, somos postos frente a frente de uma intersecção de pai e filho que evidencia a intromissão de gêneros distintos como o teatro, o conto, a conferência e a (auto)biografia como constituintes das linhas de Ar de Dylan.
A pulverização de gêneros torna-se presente a partir do segundo capítulo do romance e realça a rarefação que a leitora e o leitor encontrarão na obra: seja a de personagens, seja a de memórias, seja a da noção de autoria. E, aliás, essa pulverização é um traço estilístico recorrente nas obras de Vila-Matas: seja na confluência entre ficção, crítica e historiografia literária promovida pelo autor em História abreviada da literatura portátil (1985), que acompanha uma sociedade secreta que reúne personalidades das mais variadas com o objetivo de criar obras que pudessem ser facilmente carregadas em uma valise; seja na revisitação paródica do romance policial promovida em Extraña forma de vida (1995); no diálogo irônico com a obra de Franz Kafka levado a cabo nos contos de Hijos sin hijos (1993); ou ainda na discussão metaficcional presente nos romances que compõem a Tetralogia do Autor, quais sejam Bartleby e companhia (2000), sobre autores que decidiram parar de escrever; O mal de Montano (2002), sobre autores obcecados pela literatura; Paris não tem fim (2003), no qual Vila-Matas revisita seu primeiro romance, La asesina ilustrada (1977); e Doutor Passavento (2006), que trata do desaparecimento do autor na contemporaneidade. Em todos esses exemplos Enrique Vila-Matas faz da literatura um objeto da própria escrita ao tencionar os limites que separam diferentes gêneros textuais e literários tal como ocorre em Ar de Dylan.
Ademais, por vir na esteira de obras com temas em comum, o romance parece representar uma espécie de súmula da literatura produzida por Vila-Matas tendo em vista que, para além da dissolução entre gêneros, há ao longo da narrativa inúmeros outros elementos que encontram eco em textos anteriores do autor: a indistinção entre ficção e realidade antes presente em Perder teorias (2011), a relação problemática entre pai e filho que esteve no centro de A viagem vertical (1999), a presença de memórias herdadas como em alguns contos de Suicídios exemplares (1991) e Exploradores do abismo (2007), a relação entre a literatura e outros campos artísticos como a fotografia em Porque ella no lo pidió (2016), as artes plásticas em Dublinenses (2010) e a arte de vanguarda em História abreviada da literatura portátil (1985). Como em um jogo de espelhos, a cada novo livro a obra de Enrique Vila-Matas reflete a si mesma e com Ar de Dylan tal expediente se potencializa graças à rarefação do enredo.
Digamos que a movimentação dos elementos estruturais da narrativa em pauta seja vaporosa e corrobore para a constituição de uma estratégia intertextual que imbrica outros textos e gêneros (teatro, conto, conferência) no interior do livro. Nos interstícios dessas sutilezas está sobretudo a tradição cabalística, assentada em Belzebu, uma das entidades cujas características podem ser perceptíveis nos personagens do romance. Cultuado originalmente nas regiões da Filisteia e da Cananeia e conhecido como deus da meteorologia e de tudo o que voa, o seu nome é por vezes traduzido como o “Senhor das moscas”. No romance, sua influência é observada no efeito de rarefação da construção do personagem Vilnius, sósia de Bob Dylan, ou no prolongamento de uma das inúmeras personalidades do artista estadunidense. Este raro efeito do ar se coaduna à obra quase homônima do dadaísta francês Marcel Duchamp, que “Em certa ocasião, construiu uma gota de cristal com ar de Paris e deu de presente a uns amigos de Nova York” (VILA-MATAS, 2012, p. 199) e a nomeou “Ar de Paris” (1919), uma construção artística efêmera e semelhante à dos personagens desse livro de Vila-Matas.
Os Lancastre de Ar de Dylan são vozes dissonantes, mas complementares. Yin e yang representando o estagnado e o vanguardista, o novo e o velho, o fracasso e o sucesso. Enquanto o pai, Juan, representa a força criativa responsável por uma obra tão vasta e diversa quanto a de Bob Dylan, o filho, Vilnius, se reconhece como autor de uma obra ausente, que jamais será escrita ou filmada. Ambos apenas concordam no desprazer de terem suas obras comparadas à de Dylan, cuja personalidade surge nas páginas do romance como a síntese do sujeito contemporâneo: um “Eu” proteico e rizomático impregnado por um “ar de Dylan, a essência de nossa época” (Ibidem, p.314). Não gratuitamente, o artista estadunidense é definido da seguinte forma em dado momento do romance:
Seu rosto tem a estranha propriedade de exibir todas as idades e etapas pelas quais passaram todos os Dylan. E os Dylan são muitos até esta data: o admirador de Woody Guthrie (que na cinebiografia Não estou lá é um menino negro), o cantor de protesto, o messias eletrificado, um músico que se transformou em crente, um poeta andrógino que revolucionou o folk, um ermitão doméstico, um cigano divorciado, o Oblómov que dava de ombros e que não se importava com nada nos anos 80 e, finalmente, acima de tudo, o caubói crepuscular de hoje, cavalgando não se sabe para onde (Ibidem, 2012, p.45).
Por fim, seu reconhecimento de fracassado deve ser levado a sério para Vilnius. Por isso, ele roga ao narrador a escrita de uma (auto)biografia de Juan Lancastre depois de que ambos estreitam relações nas leituras e performances dos “Teatros” do fracassado Little Dylan. Ao longo dessas leituras, damo-nos conta da impalpabilidade das técnicas narrativas empregadas por Vilnius em cada uma de suas performances. Relembrando Hamlet, teatro shakespeariano citado no romance em que acompanhamos a construção de uma peça dentro de outra, em Ar de Dylan a interferência de outras obras dos campos literário, musical, cinematográfico e das artes plásticas cria um sem-fim de referências extratextuais, claras ou não, como matryoshkas: a intertextualidade do romance parece corroborar com o eterno fracasso do personagem Vilnius e ambos, por sua vez, flertam com o infinito.
[1] Premiado autor espanhol que estreou na literatura em 1973 e publicou, desde então, mais de trinta obras que o consagraram como um dos mais proeminentes escritores contemporâneos. Com um estilo limítrofe entre a ficção e o ensaio, Vila-Matas se aproxima de uma tradição literária que remonta a nomes como o do argentino Jorge Luis Borges notadamente em obras como Uma casa para sempre (1988), Não há lugar para lógica em Kassel (2014) e Mac e seu contratempo (2018) entre outras.
References
TRÊS Camaradas. Frank Borzage. Hollywood: Metro-Goldwyn-Mayer (MGM), 1938. DVD (100 min.).
VILA-MATAS, Enrique. A viagem vertical. Trad. Laura Janina Hosiasson. São Paulo: Cosac Naify, 2004.
VILA-MATAS, Enrique. Ar de Dylan. Trad. José Rubens Siqueira. São Paulo: Cosac-Naify, 2012.
VILA-MATAS, Enrique. Bartleby e companhia. Trad. Maria Carolina de Araújo e Josely Vianna Baptista. São Paulo: Cosac Naify, 2004.
VILA-MATAS, Enrique. Doutor Passavento. Trad. José Geraldo Couto. São Paulo: Cosac Naify, 2005.
VILA-MATAS, Enrique. Dublinenses. Trad. José Rubens Siqueira. São Paulo: Cosac Naify, 2011.
VILA-MATAS, Enrique. Exploradores do abismo. Trad. Josely Vianna Baptista. São Paulo: Cosac Naify, 2013.
VILA-MATAS, Enrique. Extraña forma de vida. Barcelona: Anagrama, 2008.
VILA-MATAS, Enrique. Hijos sin hijos. Barcelona: Debolsillo, 2015.
VILA-MATAS, Enrique. História abreviada da literatura portátil. Trad. Júlio Pimentel Pinto. São Paulo: Cosac Naify, 2011.
VILA-MATAS, Enrique. La asesina ilustrada. In: ___. En un lugar solitario: narrativa (1973-1984). Barcelona: Debolsillo, 2017.
VILA-MATAS, Enrique. Mac e seu contratempo. Trad. Josely Vianna Baptista. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.
VILA-MATAS, Enrique. Não há lugar para lógica em Kassel. Trad. Antônio Xerxenesky. São Paulo: Cosac Naify, 2015.
VILA-MATAS, Enrique. O mal de Montano. Trad. Celso Mauro Paciornik. São Paulo: Cosac Naify, 2005.
VILA-MATAS, Enrique. Paris não tem fim. Trad. Joca Reiners Terron. São Paulo: Cosac Naify, 2007.
VILA-MATAS, Enrique. Perder teorias. Trad. Jorge Fallorca. Lisboa: Teodolito, 2011.
VILA-MATAS, Enrique. Suicídios exemplares. Trad. Carla Branco. São Paulo: Cosac Naify, 2009.
VILA-MATAS, Enrique. Una casa para siempre. Barcelona: Anagrama, 2008.